quinta-feira, agosto 20, 2009

O que o coração não sente, os olhos não veem

Um merda. Era assim que ele se definia depois de um (longo) dia de trabalho. A cabeça latejava toda vez que a sua (infeliz) gerente gritava "pobrema"do alto da escada principal que dava de frente para sua mesinha de trabalho, junto à quina da parede. Como desejava ser aquela parede para não ter ouvidos. Ou ter a cabeça dessa gerente (escandalosa) entre as suas mãos para dar-lhe o fim que a sua imaginação fértil desejasse. O mundo não era justo: fez faculdade, pós graduação, MBA, cursos no exterior - viajou o mundo para quê? Para estar ali mofando? Para ganhar mal e ser tratado como um merda todos os dias? Não, não era ódio o que ele sentia, era horror. Decepção. Temia estar ali entre pilhas de folhas sem destino no meio de salas empoeiradas e gente sem critério. Na verdade, temia ser esquecido ou pior, se esquecer. Tinha medo de ficar burro, de assimilar negativamente aquela atmosfera de risos soltos e falta de dentes. Mas no ápice do seu desgosto ele sempre lembrava que era dali que saia o seu sustento, suas contas pagas e relaxava. Pelo menos estava empregado, era melhor pensar assim. Outro dia, perto do fim do ano, foi tomar um chope com os colegas de trabalho. Bebeu, bebeu, bebeu como se não houvesse amanhã, como se quisesse se afogar no próximo copo que nunca chegava. Nessa euforia descabida foi parar em uma 'boate de fim de tarde' - dessas que também funcionam como churrascaria. Amanheceu em um quarto barato de motel no Centro. Abriu os olhos e a cabeça estava pesada-pesada, provavelmente ainda com os restos da bebedeira da noite anterior. Avistou uma calcinha rosa furada no canto direito do seu travesseiro. Registrou a cena e teve medo, por isso nem quis se mexer. Temeu a vida naquele momento e permaneceu imóvel. Não olhou para o lado: olhar pra quê? Pensou. Nada do que pudesse pensar ou lamentar mudaria a história. Até que ele sentiu uma respiração quente nas costas, um braço roçando a sua pele e uma intimidade forçada pela frase que seguiu: 'ném, pega pra mim a minha calcinha aí do seu lado?' Ele permaneceu estático. Quis diminuir a respiração ofegante pela tensão, mas não conseguiu. Tentou pensar nas estrelas, em cubos de gelo, no mar, no horizonte...em tudo que pudesse trazer um pensamento de paz. Fechou os olhos e fingiu dormir like a angel. Em seguida uma movimentação esquisita na cama. Silêncio. Continuou quieto, olhos fechados. A porta do banheiro bateu. Ficou mais um tempo quieto, até que escutou o barulho do chuveiro. Aproveitou a deixa, pegou a sua calça pendurada na cadeira, sua camisa no chão, as chaves do carro que estavam na cabeceira, relógio e casaco. E saiu na ponta dos pés. Bateu a porta do quarto sem fazer alarde...

(Adriana Schimit in Contos para Ninguém)

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