sexta-feira, outubro 23, 2009

O estalo

Durante muito tempo Ursula se importou com o que os outros diziam sobre ela. Chegou ao cúmulo de modificar a sua rotina em função desses comentários, a sua imagem, suas opiniões. Era jovem, bonita, inteligente. Mas no fundo sabia que lhe faltava um tipo de inteligência diferente, digamos, emocional. Essa "nova ferramenta" funcionaria como um filtro seletivo potente capaz de separar o joio do trigo. Mas achar uma conexão pessoal com a inteligência emocional não seria tarefa fácil e Ursula sabia disso. Não existem mecanismos desenhados, muito menos a estrada de tijolos amarelos para se chegar até lá. Não. O processo iria muito além - além dela, aliás. O estalo poderia vir em uma sessão de cinema ou no meio da rua (distraída) vendo as vitrines ou ainda sozinha ao acordar, completamente descabelada e de pijamão - com uma caneca quente de café nas mãos e nada mais. Ursula sabia, inclusive, que poderia passar a vida inteira no processo 'de vir': como aquela visita aguardada que nunca chega ou como um amor que vive do outro lado do mundo sem o toque do dia-a-dia. Era coisa subjetiva: poderia estar ou não estar ali. E se estivesse, como saberia?

Durante anos durmiu e acordou com este dilema, imaginando que aquele poderia ser o dia "D", mas nunca era! Ela ainda se importava demais com o externo. E se importar incomodava tanto, mas tanto Ursula, que ela não sabia como se desvencilhar, não sabia ser diferente do que era.

Num belo dia de outubro - como este de hoje - ela acordou, fez o seu café noir, comeu uns biscoitos. Não falou uma palavra sequer. Talvez não quisesse ouvir a sua própria voz naquele momento.Ventava quente como nas manhãs do alto verão, mas não era verão. Ursula acordou cansada. É, can-sa-da. Mas não era físico, não havia passado nenhuma noite em claro. Era um cansaço de quem estava cansada de carregar alguma coisa (emocionalmente) pesada. Respirou fundo. Ursula era racional demais e por isso buscava por explicações a cada dose do seu café amargo. Mas ela não encontrava.

Uma, duas, três canecas cheias de café e nenhuma solução. Ursula não tinha mais palavras nem argumentos pra si mesma. Por um momento se achou tola e sorriu. Parecia estar em câmera lenta.