sexta-feira, junho 12, 2009

O amor em tempos de desamor

Foto: David E. Scherman, 1941

Carta a D. - Uma História de Amor é um romance entre André Gorz com a inglesa Doreen – que passou a se chamar Dorine após adotar a cidadania francesa. Eles foram casados durante 60 anos e nutriam uma paixão avassaladora um pelo outro. Mas uma fatalidade recai sobre o casal: ela sofre de câncer e caminha para a morte.

O autor inicia a carta dizendo: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor de seu corpo contra o meu é capaz de preencher”.

Gorz sabia que iria perder o “lugar de sua vida”. Ele entendia o quanto seria indispensável o suporte da sua amada e companheira Dorine que, na verdade, era mais que companhia: ele a considerava cúmplice do seu cotidiano.

Dorine era para André o filtro da vida, do que ele considerava real. Era através do incentivo e força dela que ele se dedicava a buscar, através da escrita, a decifração de si e do mundo:

“Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite; que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode inesperadamente se apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. (...) Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. ‘Então escreva!’ ”.

“O amor é o fascínio recíproco de duas pessoas por aquilo que elas têm de menos dizível, de menos socializável; de refratário aos papéis e imagens delas mesmas que a sociedade lhes impõe; aos pertencimentos culturais. (...) Você havia me dado a possibilidade de escapar de mim mesmo e de me instalar num outro lugar, do qual você me trouxera notícia. Com você, eu podia deixar de férias a minha realidade”, escreve Gorz.

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Não há salvação para o 'amor demais' senão pela via do suicídio a dois, até a última gota e a derradeira injeção letal que, aliás, Gorz e Dorine se aplicaram mutuamente, no outono de 2007, no retiro de Vosnon, para onde se mudaram, octogenários. Seria completamente impensado um outro final para uma história de amor que se quis eterna mesmo sabendo-se finita - um breve passeio sobre a insondável Terra dos Homens.

“Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher. À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. (...) Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.”

OBS.: Essa carta foi escrita entre os dias 21 de março e 6 de junho de 2006. Em setembro, os dois foram encontrados mortos lado a lado...

(Carta a D. – História de um Amor”, de André Gorz. Tradução: Celso Azzan Jr. Posfácio: Josué Pereira da Silva. Annablume/Cosac Naify. 80 págs).



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