quarta-feira, julho 23, 2008

Meu pau murcho

"Desejaria viver em júpiter onde as almas são puras e a transa é outra."
(Henrique do Valle in Vazio na Carne)

Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que se há-de fazer ou apenas mas-afinal-que-importa? E cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde, doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta. (...) Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado o cheque, nem trabalhado a trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. (...) Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro - que diferença faz? Oficializar o já contecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.

(Caio Fernando Abreu in Morangos Mofados)

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